04/11/2010

O desemprego gera crise de identidade


A perda do emprego está na lista dos piores fatores adversos que nos acontecem na vida, como as catástrofes naturais, a morte de uma pessoa amada, a doença grave, a separação ou o divórcio.

Nenhuma novidade nisso: é fácil entender que a perda do emprego seja fonte de angústia, de depressão e mesmo, às vezes, de "comportamentos anti-sociais": alcoolismo, violência familiar e condutas criminosas. Compreendemos imediatamente, por exemplo, o desespero de um chefe de família que não consegue preencher as expectativas de seus dependentes. "Se a família não pode mais contar comigo, perco minha razão de ser."

Mas há algo mais, que talvez faça do desemprego a adversidade mais danosa para nossa saúde mental. Preste atenção: no balcão de um bar, como na mesa de um jantar, se seus vizinhos forem desconhecidos, a primeira pergunta não será "quem é você?", mas "o que você faz na vida?". Se eles tiverem uma intenção alegre, talvez tentem primeiro descobrir seu estado civil. Fora isso, o interesse pela sua identidade se apresentará como interesse por seu papel produtivo.

Ora, tanto você como seu vizinho (ou vizinha) viverão essa conversa inicial como um momento, de alguma forma, falso. Pois todos sabemos que somos mais do que nosso ofício: temos histórias, amores, esperanças, interesses, paixões e crenças que, de fato, expressariam muito melhor quem somos. Ao trocarmos cartões de visita, mentimos por omissão. Identifico-me como executivo, bancário, escritor, médico, contador, radialista, mecânico, mas quem sou eu?

Não é o caso de sermos nostálgicos. Num passado não muito remoto, cada um era definido por sua proveniência, e as perguntas iniciais diziam: quem foram seus pais e antepassados? Onde você nasceu?

Prefiro os dias de hoje, em que são nossas próprias façanhas que nos definem. É uma escolha que deveria nos deixar mais livres, mas acontece que a praticamos de um jeito estranho: junto com os laços que nos prendiam às nossas origens e ao passado, nossa vida concreta também é silenciada na descrição de nossa identidade. E nos transformamos em sujeitos abstratos, resumidos por nossa função na produção e na circulação de mercadorias e serviços.

Conseqüência: o desemprego nos ameaça com uma perda radical de identidade. E não adianta observar que, afinal, nos sobra o resto, ou seja, toda a complexidade de nosso ser. Tipo: "Perdi meu emprego, mas ainda sou pai amoroso, amante, esposo, amigo, leitor de shakespeare e Gremista ou Colorado".

Não é por acaso que as mulheres lidam com o desemprego melhor que os homens, porque o impacto do desemprego é maior nos homens, principalmente os casados do que nos solteiros ("se não traz o feijão, você ainda é o pai?"). Já as mulheres casadas com filhos, ao perderem o emprego, sofrem menos que os homens e menos que as solteiras, porque para as mulheres, o exercício da maternidade ainda constitui uma identidade possível. "O que você faz na vida?". "Tomo conta de meus filhos." Para os homens, essa resposta não basta.

Enfim, espera-se que a economia crie empregos. Mas os poetas e os escritores, pensadores e psicólogos também têm uma tarefa crucial: são eles que podem, aos poucos, convencer a gente de que é nossa vida concreta que nos define, não nossa função produtiva.

Publicado no Jornal O Sentinela no dia 21/10/2010

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